7/02/2019

O escárnio (Conto), de Raul Brandão



O escárnio

No ermo da noite o Gabiru vai tecendo a sua teia: "A matéria também sonha. Nessa mistura de homens e calhaus, torrente que leva consigo gritos e forças embravecidas, turbilhão a rasto pelo infinito fora, não é indiferente ir ser pedra ou nuvem, nascer em macieira de quintal escondido e humilde ou na água fulgindo duma fraga. Não é o acaso que reúne ou afasta as moléculas, para as fundir noutras formas. Há corpos que a química não consegue ligar, porque os separa o ódio, e outros que se atraem com sofreguidão.

Depois da morte a matéria entra num mar. Rios acarretam as moléculas, até que se encontrem as que se devem juntar. O meu coração unido ao teu há de florir num espinheiro. Será num sítio pobre, mas alguém que passe nesse Abril, sentir-se-á enternecido para sempre. O meu cérebro procurará o teu cérebro para vogarmos juntos na mansidão dum rio. Ora em terra, ora em pedra buscar-te-ei inconscientemente até dar contigo e te fruir nesse oceano bravio. Se tu fores fonte, irei topar-te e juntos apagaremos a sede a muita raiz esquecida.

Criaturas simples vão ser árvores que de anainhas a gente se sente comovida ao vê-las; os sonhadores, desfeitos em nuvens, andarão nos poentes do mar salgado, e as penedias, que o sol abrasa, as penedias eternas, serão construídas do coração dos maus.

Ei-lo o prodígio, o extraordinário milagre, esta vida que o Pita me mostrou, árvores, nuvens, mar, este monstruoso referver de vida, igual nos montes e nos ígneos mundos. E eu pertenço a este pélago como tu, passo os meus dias a contemplá-lo!

Fico horas a aparar nas mãos o jorro do sol, olhando-o correr...

Por força existe uma razão superior, senão o homem seria Deus, a consciência do universo, o que se não compreende: um deus reles, com misérias e gritos, sempre a escalar o infinito e sempre despedaçado pelos tombos.

Sê sempre bom, porque a bondade eterniza o amor.

Os crimes da matéria pune-os a matéria, os crimes do espírito pune-os o espírito.

Já ouviste que as árvores, o mar e as pedras tivessem dúvidas ou tremessem de pavor?

Ver o sol, o universo, olhar, já é um prodigioso milagre. Mas tocar, compreender calhaus, almas, ter raízes em todas as estrelas, no céu e no oceano – é o portentoso sonho.

O homem arranca de si próprio universos de beleza.

O homem tem uma centelha de prodigiosa alma que erra no grande mar de sonho que vai espraiar-se de estrela a estrela e tudo enche, doirado e enorme, e que em si consubstancia o gênio, a beleza, o amor. Logo que a matéria se dispersa, a imorredoura faísca volta ao atlântico donde tinha saído.

Criamos cada um de nós um universo de angústia ou de beleza, ressequido ou de fogo. São felizes os bons portanto. Há no entanto criaturas que vivem sem suspeitarem que o universo existe."

Às vezes nos mais simples fatos encontra-se mistério, como num punhado de desprezível terra há uma força escondida. Parece inerte. Esperai, porém, que março a toque!... Assim esse pobre desajeitado, sempre tímido e vestido de negro, tinha uma existência feliz. Na trapeira passava as horas a cismar nessa rapariga quase tísica, com um ar de máscara que vai gritar de aflição. A Mouca foi amada como as princesas lendárias, e esses amores entre um filósofo esfaimado e uma mulher da vida tinham não sei que enternecido interesse. Sobre os calhamaços do Gabiru alguém encontrou por vezes flores ressequidas e nessa primavera – caso único – o vento trouxe por cima dos telhados duas borboletas que vieram noivar no saguão.

Ele era feliz. Que importa ter-se fome, se se ama? O amor e a fé não transformam o mundo até às suas mais profundas raízes? Quem diz que se não podem construir com aquelas nuvens esparsas marmóreos palácios ou estrofes de luar?

As suas teorias, as suas ideias ia-as tecendo e olhando a Árvore. Pelo tronco corriam estremeções. Debruçado na trapeira, fascinado olhava os galhos esbranquiçados, ainda nua, mas – como direi?–já vestida de emoção.

– Aquela Árvore... – murmurava ele cismático. Em baixo corria sempre a levada, lágrimas, gritos, gargalhadas, lama espezinhada que fala, lodo misturado de sonho, logo nascido, logo atirado à arena, gebos, prostitutas, monstros em cujo corpo de sapo habita a alma dum deus. Por quê? donde? De que ruínas se constroem estes seres que o destino marcou com dedadas trágicas? São feitos de pedaços de estátuas e loucura. Falam em gíria. Se riem são o Riso e é como se dentro deles andasse um doloroso palhaço aos saltos. Têm olhares de desespero e de ódios. Eis um rio de gritos que brotou para sofrer. É a noite que anda a arquitetar de neblinas os seres destinados à arena? Este esgoto que passa, todo revolvido, pela natureza indiferente, é porventura necessário e fecundante?...

Todos os dias o Gabiru lá vai sentar-se olhando a Mouca entre os ladrões e os soldados, que a noite surgem para se rirem das lágrimas e dos gritos. Entre a turba sinistra vem sempre o velho, calado e feroz, que só ri com uma boca disforme, e o Morto, que fala com desprezo do sofrimento, das mulheres, da morte. O Gabiru, encolhido e triste, põe-se ao seu lado a olhar para a Mouca e vai tecendo o seu sonho. Toda a noite é uma mistura de gritos, de lágrimas e risos. Espancam as mulheres e quando elas choram, caídas, tornadas em escárnio, ínfimas como a terra, todos eles riem, com um anh! de satisfação por as fazerem sofrer.

Mas um deles nessa noite repara no Gabiru, perdido a um canto sem ver nem ouvir, ridículo, esguio, alheado. Aponta-o e logo a turba emudece.

O Morto, pondo-lhe a larga mão no peito:

– Ó tu!

– Anh?

– Tu que andas aqui a fazer, ó Gabiru?

Logo o Velho escancara as faces e todos os outros de repelão se erguem.

– Esperem... Tu não ouves?

– Anh? – diz ele, acordando estonteado. – Anh? Então o Morto, que aperta sempre uma contra a

outra as mãos geladas, como se tivesse vontade de maltratar, clama:

– Acho que é poeta! Dizem que é poeta!...

E em torno pega-se o riso feroz como um mar que sobe. As mulheres, que foram sempre maltratadas, chegam-se rotas, tísicas, rasas como o chão:

– É o poeta!

Há olhares vesgos, de ódio, lume que gela e arde. A maldade ressurge. Vão-se rir, vão espezinhar. Logo o coro de gargalhadas e de gritos estruge.

– Olhai pra ele... Sabeis como lhe chamam? chamam-lhe o Gabiru.

– É o enguiço – diz a Mouca.

– Olha lá – avança outro – onde metes tu essas pernas?

– Anh? – pergunta o Gabiru sem entender ainda, tonto de sonho.

E fita os ladrões e as mulheres que formam roda. Esguio e transido de frio, dentro do casaco de alpaca, pela primeira vez descobre, à luz do candeeiro fumarento, a triste realidade, as mulheres da vida, os seres de descalabro, as cara dos ladrões. Há fisionomias de pavor, e em semicírculo, chegam-se para ele, de bocas escancaradas, só bocas. Ninguém se ri da dor física como os pobres, que só admiram a força.
– Tu que andas aqui a fazer, ó Gabiru?

Ele espantado acorda:

– Anh?

Olha-os tonto, magro, esfaimado. Através da névoa do sonho vê a realidade, e entre o circulo dos ladrões e das mulheres acha-se transido, tímido e torto. Em redor os outros sentem que vão fazer mal. Vão-se rir do que é pobre e desajeitado; vão-se rir do que não compreendem – do sonho.

– Acho que é poeta!...

E os ladrões ululam. O riso é ódio, o riso ignaro é ódio da matéria contra o espírito. Tem este nome – o escárnio. Ajuntam-se os ladrões e as mulheres para gargalharem daquele ser encolhido e torto.

Tem passado fome, tem vivido só com pão e cisma, preso a nuvens e de súbito dá de cara com o escárnio. Há quem se ria da dor, dos gritos, da tragédia. O mal faz rir? Faz. A dor faz rir? Faz. E a desgraça? Também.

Os ladrões e as mulheres têm vontade de espezinhar porque odeiam e não compreendem o sonho. Arrastem para um tablado as piores ruínas e as mais amargas catástrofes, que a multidão gargalha. Ponham a fome a ulular, que a matéria ri. Ri de tudo o que é triste, pobre e torto – e do que é belo como os astros.

Ressuma raiva o escárnio. Neste riso há sempre gritos. Toca a gargalhar da desgraça e da dor; trans-formam em força toda a tragédia humana.

– Diz que estás apaixonado? O Gabiru cala-se.

– Tu não falas?... Ah tu não falas, enguiço?... É desta que tu gostas?

– É de mim? – pergunta a  tísica e tosse, rindo-se.

– É de mim? – Está ao pé da cova e espezinha, ri com ódio, pelo que sofreu na vida.

Cessam num momento os risos. O que sentem todos é vontade de o calcar, de o tornar raso como eles...

– É por esta? Não? Então tu imaginas que há alguém que goste de ti, meu desengonçado? Tu!... Vocês vêem-no? Nem sei que parece! Aí vai o poeta!...

Dá-lhe um encontrão, atira-o e, entre risos e chufas, vai de mão em mão como um trapo. Todos têm vontade de o amachucar, de o tornarem mais reles, mais triste, mais pobre e transido, por não lhe poderem tirar o pão da sua vida – o sonho.

– Aí vai o poeta!...

Até que o largam. De pé no meio da sala, com o casaco roto, amolgado, exclama, não compreendendo:

– Mas eu que fiz? eu que fiz?... – Vai rir? vai chorar?...

As gargalhadas redobram ao verem-no espantado e pícaro. As bocas más clamam, cheias de gritos. O seu olhar aflito procura a Mouca e vê-a rir-se também. Nos olhos reflete-se-lhe o abismo que descobre, a secura dos outros, o sonho calcado e por terra, lágrimas e enternecido espanto.

– Foste tu! foste tu! Tu riste-te de mim!... – diz, apontado a Mouca.

Os ladrões gargalham e só ela se cala, a Mouca que tem rido sempre de tudo, da vida, da morte e até da própria desgraça.

– Ó Mouca! ó Mouca! olha o poeta! – gritam todos uma.

– Que é! Deixem-me!...

E cisma.

Altas horas da noite. Saio, erro... A pensar em quê?

Em coisas desligadas, sem nexo: na ambição, no ódio, no exaspero. As ruas seguem monótonas, negras, enlameadas; dum lado e de outro as casas parecem construídas de tinta, e de lama o céu, que se desfaz e goteja. Que mundo este!... Na minha frente, reparo, caminha um velho... Não o distingo bem: é a sua sombra que eu vejo, cômica e desengonçada e, ao passar pelo lampião ia jurar que lhe notei cabelos brancos. Aquela sombra agita-se. Mexe os braços, com o chapéu na mão, fala sozinho, discute... As vezes tropeça, ergue-se e lá parte a pregar por entre a casaria e o ruído, debaixo da chuva miúda, lama negra que goteja do céu.

Agora as ruelas apertam-se e, já reparei, ele pára, volta para trás, há meia hora que gira no mesmo sítio, absorto. A chuva enlameia-lhe os cabelos e os seus braços gesticulam num redemoinho.

Das alfurjas vai saindo um ou outro noctívago, que o olha e passa indiferente, murmurando os seus exasperos ou as suas aflições.

A cidade di-la-íeis farta de tédio, afundando-se em lama. As nuvens baixas e disformes esfarrapam-se, colam-se aos prédios. Os casarões alongam-se pesados e enormes, e onde a onde irrompe um golfão de luz. A sombra caminha, toma por ruelas funéreas. Vai sozinha com o seu sonho ou a sua desgraça. Três horas numa torre. Há um silêncio cavo. Chove sempre a mesma chuva tenaz, com um céu nublado e aflitivo. A cidade morta, sob o aguaceiro, espapaça-se na lama. Debaixo de cada um destes tetos escondem-se as mesmas misérias e os mesmos sonhos. Esta pedra abriga ódios, crimes, escárnio. A sombra perde-se no escuro, torna, pára indecisa...

Que me importa o que os outros sofrem? Uma desgraça? O mundo está cheio de desgraçados. Um sonhador que se afunda? O mundo está farto de sonho. Este mesmo céu pesado, esfarrapado e trágico, tem abrigado sempre gritos e catástrofes. Que me importa o que ele sofre? Cada um por si, cada um com as suas lágrimas e os seus ódios... O homem por vezes tropeça, cai; depois lá se arrasta trôpego. Alvorece e, àquela primeira luz, a cidade parece desenterrada. A casaria ressurge, emerge da treva, leprosa, cambada, gasta pelo ódio, pelas ambições, pelos rancores...

Ei-lo que se senta na terra, arrasado, enlameado, exausto... Ao romper da manhã começa de novo a chover e ele chora.

Tanta lágrima! Um dia a desgraça, no outro a desgraça... Aquela sombra é a minha! aquele homem sou eu!...

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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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