7/02/2019

Essa rapariguinha (Conto), de Raul Brandão



Essa rapariguinha

Quedo-me a cismar sozinho neste velho casarão...

De noite ouço vozes, logo sufocadas, que me querem falar e não podem. Só os meus crimes de outrora (há tanto esquecidos) se põem a pregar dentro de mim. Arqueja o lume no escuro e sinto em redor toda a treva povoada...

Foi há vinte anos e no entanto hoje, como em certas horas presagas, alguma coisa remexe e acorda dentro em mim. Oh não! bem sei, por de mais conheço a forma por que as ideias se ligam, até as mais contraditórias, e como um nada recorda um velho crime abafado... Mas não é isto: é do fundo do meu ser que esta imagem irrompe, desligada, sem nexo, como um fantasma. Às vezes estou só e esquecido e um estalido atrás de mim lembra-ma, outras acordo de repente, altas horas, já a pensar nessa pobre criatura explorada. O rumor da vida, outros crimes amontoados, podem fazer-me esquecer esta imagem, mas um dia vem em que grito:

– Abandonada! abandonada!...

E no entanto o fato em si é simples e banal, vulgar como essa rapariguinha das ruas, molhada até aos ossos, a quem nem mesmo soube o nome, porque nem sequer lho perguntei.

Convenci-a a que me seguisse por vaidade, para ser como os outros, ao encontrá-la uma tarde, sem pão, expulsa de casa, vagueando na tristeza das ruas. Teria quinze anos? Teria. Disse-me a medo que sim. E eu, levando-a para a casa de passe, sentia, não orgulho, nem prazer, mas opressão e vergonha. Perguntava já a mim mesmo: como hei de ver-me livre dela?

Nada mais ignorante, mais puro, mais simples...

Foi um crime. Deixei-a rapidamente, dando dinheiro à mulher gorda e vesga, que sorria, e fugi como quem foge ao remorso.

Mais nada. Porque é então – já lá vão muitos anos – que a certas horas de silêncio me lembra essa pobre criatura e as suas palavras ingênuas, o sorriso da mulher vesga e o pobre corpo magrinho e encharcado da chuva, todo dorido da vida?

Vejo-a aqui, aqui no escuro, descalça, molhada até aos ossos e a sorrir-se para mim, com um sorriso todo lágrimas, com um sorriso tão triste que me dói o coração.

Arqueja o lume no escuro todo povoado de vozes, que vão pregar, mas que logo se calam sufocadas. A ventania passa lá fora e na escada soam os passos do gato-pingado; as mulheres gargalham e eu fico sozinho, a cismar, neste velho casarão, com os olhos presos no lume que esmorece...

Por fim tudo se confunde na minha alma, os vivos e os mortos, o sonho e a realidade. Há dias em que não distingo as feições dos que habitam comigo no prédio, das feições dos que estão enterrados na cova. Tanto vale o fantasma que me persegue como este homem que pára à minha porta gemendo.

E ei-lo outra vez no patamar a tossir, com o peito escalavrado e roto!

Na verdade não conheço ninguém tão nulo, banal como a própria banalidade. A sorrir, a amar, e até com o coração despedaçado, esse homem fazia sempre rir. Os próprios inimigos tinham por ele piedade ou desprezo. Sim, piedade ou desprezo, porque era incapaz de ódios. Nunca pudera aprender a vingar-se e sabiam-no. A mim mesmo me fez algum bem, que depois lhe retribui em esmolas, ao encontrá-lo estatelado na rua: Nunca lhe achei interesse: a sua vida é a vida de todas as criaturas que se afundam por falta de tino prático para a luta: enlamear, mentir, triunfar enfim. A vida (oh todas as sólidas filosofias o ensinam) é de quem possui a força e aptidão... Mas hoje estou num dia enervado e sinto-me sozinho neste velho casarão. Parece que a noite tem vozes e que os meus crimes de outrora (há tanto esquecidos!...) encontram enfim palavras e se põem a falar dentro em mim.

É talvez para fugir a esta obsessão que me deito a cismar na vida deste ser banal como a própria banalidade.

Nem sei como conte, com que palavras faça a narração duma existência que é como um trapo que se deita fora todo molhado de lágrimas.

Sim, um doido. E nunca foi feliz. Veio um dia a catástrofe e incendiou-lhe a casa: mais tarde enganaram-no, mentiram-lhe. E não faltou a doença a escalavrá-lo brocando-lhe a cara e a tísica a romper-lhe o peito com tosse, nem a miséria a deprimi-lo. É por isso que ele, ao sacar das casas o caixão dos mortos como quem o arranca do peito dos que ficam, decerto ri por dentro, há de rir consolado.

Apedrejam-no os garotos ao vê-lo passar para os enterros, fogem dele os vizinhos e só uma mulher, tão maltratada pelo destino como ele, fala ao gato-pingado. Foi sempre assim: raquítica, triste e feia. A vida para ela tem sido sustentar primeiro a mulher que a tirou do asilo, depois o homem com quem casou, e que logo a deixou sozinha. Só com o gato-pingado conversa às vezes. Diz sempre as mesmas coisas e com que mesquinhas palavras! Mal sabe exprimir-se. Falam os dois como podem comunicar entre si as pedras, os seres que o acaso rola juntos no mesmo vagalhão da vida. Nem se queixam – e de que se hão de queixar? Deus os sustenta na sua mão de pai.

– A gente é pobre – diz, ele.

– A gente é pobre – diz ela. – E às vezes passa fome.

– Passa.

– Quando a minha mãezinha era viva, eu rapava fome. Era preciso dar-lhe o sustento e eu mal o ganhava para mim. Ate que acabou de penar os seus trabalhos. Tudo se acaba um dia.

– Pior do que isso é não ter ninguém. É pior do que a fome.

– É o pior de tudo.

– Que se há de fazer?

– Sabe vossemecê? olhe que eu às vezes ponho-me a cismar porque é que a gente sofre...

E o vento ulula. No coração do inverno o enxurro leva as lágrimas que ensoparam a terra e a lufada arrasta os gemidos para um destino ignorado. Rola as lágrimas dos pobres, nalguma nuvem perdida, e gemidos, ais, palavras leva-as o vento consigo. Noite negra! noite negra! Arqueja o lume e o prédio sob a ventania arqueja.

Eis-me a cismar absorvido nas brasas, fascinado pelo seu escarlate, ou com os olhos postos nesse outro lume, o Hospital, que brilha na escuridão como um brasido de gritos.

A pedra de que o construíram di-la-eis transida. Foram-no acrescentando: ao granito ligaram o granito, conforme a miséria cresceu. Arrancaram-no ao coração da terra. A ossada dos montes, abraçada pelas raízes, a fraga escondida que com a água viveu e em si a guardou, sentindo-a bulir no seu seio, minar para a luz, a pedra irmã da terra, sepultada na terra, veio ter este destino – abrigo de míseros.

Ao pé da pedra no saguão a árvore cresce, cada vez maior. As suas raízes vão sob a terra até ao Hospital e os seus braços doridos quase cobrem o prédio. Dum lado o Hospital, do outro a Árvore. Só eles prosperam. Deita a árvore pernadas e a cada inverno o granito aumenta, qual outra árvore de pedra. Num corre seiva, no outro gritos. Também o hospital estende raízes por toda a cidade.

À custa de que esforços e de que dor chegou a Árvore a crescer? Nenhum destes desgraçados sabe o seu nome, ninguém sabe dizer para o que serve. A maior parte da gente na cidade de pedra nunca viu uma árvore...

E ela teimou. Subiu. Deitou ramos esbranquiçados para o sol e para a luz, como uma árvore espectro – uma árvore dorida, uma imensa árvore dorida e estranha. Suas raízes vão sugar no hospital. Com os anos enlaçaram o granito, pouco e pouco desconjuntaram-no, abriram fendas para mergulharem mais fundo na miséria humana.

E para lá? o que há para lá? Ao findar dos dias sinto um ar vivo que é a respiração dos montes adormecidos, batendo como ondas nos muros compactos do hospital, e ruídos, claridades, mistura de ouro e verde, gorgolejos de minas, chuva de sol e de água tombando. Arfa a terra, incham os montes e vogam no ar aspirações de árvores, murmúrios de fontes, o hálito das plantas ignoradas. Oh há noites encharcadas de luar, em que se ouvem as lágrimas das noras paradas, caindo uma a uma na terra sequiosa, e se pressentem diálogos de sonho entre os grandes pinheiros bravios... E a Árvore fica indiferente.

Mas os desgraçados gritam, os pobres gemem – e a Árvore entontece, abalada até às raízes mais fundas...

Esperai! esperai!... A ventania redobra. Depois um silêncio prostrado, um silêncio pior do que a lufada, em que eu ouço o esforço que o mundo que povoa a escuridão faz para gritar. A treva arqueja e a última brasa reluz ainda no lar, cujo escarlate arqueja, arqueja e vai esmorecendo...

Grito! É sempre a mesma rapariguinha que ressurge, magra, pálida e triste, com um pobre vestido encharcado de chuva ou ensopado de lágrimas. Sorri para mim descalça, estendendo-me os braços. Ei-la! ei-la!...

Só uma brasa ainda vive no lume, misturando na escuridão uma poeira escarlate. E vai apagar-se! extingue-se!...

Toda a vida é uma construção de gritos, a cada passo para a frente há sempre uma criatura espezinhada...

Que queres tu?

E uma coisa fútil a vida? Então porque não conseguimos apagar o vestígio dos nossos passos? por que não conseguimos esquecer? Esquecer! esquecer! Não, nunca mais se esquece a dor que se causa no mundo! Passam-se os dias e os anos e a imagem ressurge diante dos meus olhos. Não me acusa. Eu é que me acuso. Todos os passos que damos no mundo tão irremediáveis, toda a dor ligada à dor, todos os mortos e os vivos fazem parte da mesma legião que me estende os braços. Tu que queres?...

Não é ódio que ela tem por mim, porque o seu sorriso, que eu sinto molhado de lágrimas, é triste mas resignado. No entanto o remorso acorda, o remorso põe-se a rugir... Vejo a mulher gorda e vesga dar-lhe dinheiro; vejo-a depois partir através das ruas, encharcada até aos ossos, sem perceber porque foi vilipendiada, enganada e expulsa... Vai gritar? De que servem os gritos na terra, não me dirão?

Para quem há de ela apelar no mundo? E não entende. Descalça caminha pelas ruas desertas à chuva; pela vida aspérrima ao abandono. Vem depois outro e engana-a, mente-lhe. Para que servem os gritos na terra? Tem de sofrer e de se resignar à brutalidade, ao escárnio, aos risos; tem de se afazer a ser explorada, à mentira, à infâmia... E assim caminha, ensopada de lágrimas, afundada na desgraça pelos que passam e riem; assim vai pela vida fora até onde?... Até onde?

Oh aquela brasa que ainda reluz como uma poeirinha de ouro, aquela brasa que vai morrer no lar quase de todo apagado!... A lufada doida passa lá fora aos gritos! Quanta gente grita neste vale de lágrimas! Imensa legião de pobres formando um só corpo em carne viva, desordenado rio de dor que une a terra a Deus! A esta mesma hora quantos berram espezinhados, sem mão que os ampare? De que servem os gritos, não me dirão?...

Aquela réstia de lume é como o último fio de uma alma que vai findar!...

E ela aí volta, aí torna! Pobre corpo murcho, nascido para o sofrimento, já dorido da vida, vestido duma sainha e dum sorriso resignado de quem já pressente o que a espera – quantos gritos! quantas lágrimas pela existência fora!...

Cerrou-se de todo a escuridão. Sufoco!...




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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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