7/02/2019

O enxurro (Conto), de Raul Brandão



O enxurro

Vem o inverno e os montes pedregosos, as árvores despidas, a natureza inteira envolve-se numa grande nuvem úmida que tudo abafa e penetra. As coisas di-las-íeis recolhidas e cismáticas.

É um rolo misterioso e profundo que vem dum mar desconhecido. E a chuva começa, o ruído doce da chuva que faz sonhar em tantas coisas idas e tristes! Primeiro a terra embebe-se e incha. E, depois de cheia, a torrente jorra até polir as pedras: ara, põe raízes à mostra, arrasta na aluvião o húmus, as folhas secas das árvores, os cadáveres dos bichos, os detritos desagregados das rochas, que rola juntos, dispersa e reúne, atira, entre a baba da água, para um destino ignoto.

Assim a vida. É um rio de lágrimas, de brados, de mistério. A onda turva põe as mais fundas raízes a mostra, a torrente leva consigo de roldão a desgraça e o riso; sem cessar carreia este terriço humano para uma praia onde as mãos esquálidas dos que sofreram encontram enfim a mão que os ampara, onde os olhos dos pobres, que se fartaram de chorar, ficam atônitos diante da madrugada eterna, onde todo o sonho se converte em realidade...

É noite. A ventania redobra e nas lufadas que passam viajam gritos, catástrofes, lamentos. Sou pobre e transido e nada sei da vida, mas sou um príncipe. De que terra? direis. – Do sonho. E assim neste prédio revolvido me quedo, sozinho e triste, a escutar... Ouço um rio que os mais não sentem.

Cada criatura nascida traz consigo uma fonte, fio de água umedecendo a frincha duma pedra ou levada impetuosa e aos jorros. É ela que tira à vida a sua secura. Em certos seres pobres e simples quase se ouve essa água correr tão amoravelmente, que dá vontade de nos chegarmos à sua beira. É emoção. Minai, não na deixeis secar.

Neste casarão onde moro a toda a hora se ouve o ruído da levada; corre sempre como as torrentes desordenadas e esplêndidas. Prega o inverno bravio, o vento e os aguaceiros passam, mas escutai, escutai!...

São meus vizinhos, lá em baixo mulheres perdidas, ao pé de mim dois casados, e na trapeira um gato-pingado, a quem chamam São José. As mulheres passam às vezes na rua, com os xales a rasto; o gato-pingado só sai à noitinha à hora dos morcegos. Mais tímido que eu, encontro-o nas escadas a tossir, com o peito escalavrado e roto.

Para que vive esta ralé? Levantam-se derreados, para cavar, para berrar, para que lhes deem um pedaço de pão e só se deitam no sepulcro. Caminho sem sonho. Da vida coube-lhes este quinhão amargo: o cansaço, a humilhação e a fome.

Se passam pelas árvores num dia de primavera, tão lindo, que até as próprias macieiras de comovidas se desentranham em flor, sabeis o que acontece? As árvores retraem-se, as coisas calam-se, ao vê-los passar cobertos de suor, calcados e gastos. Para que é que vivem aos gritos ralé, pedras, sapos? Para que é que Deus os cria?

O gato-pingado... Ei-lo que sobe. Cada passo me lembra uma pazada de terra. É soturno este homem, esguio e magro, com o chapéu alto embrulhado no lenço do rapé e a casaca dobrada no braço. Nunca fala. Estou mesmo em dizer que não pensa, este avejão que só sai para os enterros. Deve ser mau, deve ser duro: nunca decerto chorou. Os garotos apedrejam-no quando passa pela rua, esguio, vesgo, de chapéu alto e casaca. Aposto que, quando arrancam das casas os caixões como quem arranca o coração dos vivos, ao ouvir gritos, tem o riso interior de quem está farto de viver só, arredado e humilhado... Gato-pingado! gato-pingado! Vive de lágrimas, sustenta-se de dores. E quando vai, de tocha acesa, esguio, a galgar atrás dum carro funerário, na reles mascarada, em que irá ele a pensar, esbaforido e triste?...

Outros... Casaram há muito. Pobre e sem mãe atiraram-na um dia para um colégio de órfãos, onde cresceu entre maus tratos. Riam-se dela. Era um aborto que crescia por caridade. Passava a vida na enfermaria e os médicos – acho que de propósito – livraram-na da morte, para que depois sofresse.

Encontro-a nas escadas, com as botas do homem, os cotovelos rotos, e magra e desleixada que faz piedade.

– O melhor tempo que eu vivi foi o da enfermaria. Havia lá uma irmã que me beijava e fazia festas...

Mais felizes são os cães vadios, mais felizes, incomparavelmente, são as árvores.

O homem chega a casa e bate-lhe, faz-lhe tratos. Se chora e se queixa desanca-a mais. E agora, como não dá palavra e só pensa: – Antes eu fosse para criada de servir! – ele quer que ela grite e chore.

Antes tu fosses para mulher da vida, digo-te eu!...

Esta manhã apareceu com os olhos inchados e pisaduras na cara. O vestido já lhe não serve. E como está frio, reparei, traz os pés metidos nos sapatões de homem, sem meias e roxos. Aprende na vida, sofre! Até

morte, até que te acabe de matar com maus tratos. As vezes, se ele sai, põe-se à janela, a cismar na irmã, que, quando caia doente, lhe dava beijos e lhe fazia festas – e pergunta:

– Por que não morri então?...

Cala-te e sofre. E até à morte, até o teu pobre corpo cair exausto e moído, negro de pancadas.

Este velho que pára nos patamares das escadas, gordo e mole, de cabelos brancos estacados, é o Gebo. Todo curvo, olha com um olhar aguado e tonto.

– Ó Gebo!

E ele, erguendo o carão aflito:

– Anh?...

E como este, mais. A toda a hora vai o enxurro humano polindo as pedras. A ventania açoita o casarão e passa, levando poeira de cisma, ais, para outro mundo ignoto. Com a noite redobra a vida desta multidão feita de terriço: certos homens são sonhos, outros gritos. Põe-se o Gebo a contar a sua história, surge uma velha trágica, com o caio dos palhaços, e o Gabiru, filósofo esguio que tem descoberto mundos e ignora as coisas mais simples da vida. Remexe num brasido de ideias e nunca olhou cara a cara a existência. Anda atônito na rua, perdido num mundo que descobriu à proa do seu barco como um navegador. No subterrâneo do prédio mora – há quantos anos? – um homem que ninguém viu e de quem ninguém sabe a história. Emparedou-se. Odeia a luz: essa poeira azul, que embebe os seres e as coisas, março, a árvore, a vida tumultuária e larga como um rio, nunca mais a viu. Está vivo num túmulo: só as paredes esbraseadas, à força de sonhar, a rubro como as pedras duma forja, conhecem a sua dor. Pára no patamar o Gebo contando o que sofreu aos pobres que o querem ouvir. Muitos fazem roda e ele narra pedaços duma triste existência de humilhação e de esmola, sempre esbaforido e escorraçado, a filha a sustentar o desprezo do mundo, as suas correrias, desorientado e com lágrimas, atrás do pão para os seus.

A ventania aumenta, abalando o prédio. De que é construída uma casa? De pedra. Todo o globo é revolvido para abrigar o homem. A árvore e a ossada da terra são arrancadas para o servirem. Juntem a isto gritos. De pedra, de árvores e de gritos foi construído o Prédio. Juntem a isto sonho, que transforma as coisas. Um sofre nos subterrâneos, outro de tanto sonhar empoeirou de ouro o granito. De forma que toda a casa, amolgada e revolvida, tomou alguma feição daquelas existências. É a habitação do Gebo, das prostitutas, do Gabiru, do Pita. Escancara-se o portão, caem-lhe os telhados, mas se, em cima, nas mansardas arrombadas dá de chapa o sol, acreditá-la-eis a cismar, a cantar. É efetivamente de pedra e de sonho.

Chove, mas a terra árida não tem água nem plantas. Em volta a cidade é odiosa, pedras sobre pedras, muros atrás de muros. O céu fica muito alto e só se vê das trapeiras. Há seres lá no fundo que nunca levantaram a cabeça... Andam-se léguas e a cidade não acaba, envolta em fumo cada vez mais negro e riscada de chaminés cada vez mais altas.

Só um simulacro de árvore cresceu naquele saguão infecundo. Sustenta-se de dor. As suas raízes foram minando até ao Hospital, construído em frente da casaria, para sugar a vida dos pobres. Se um raio de lua, escoado pelas nuvens, a toca – eis um fantasma de árvore todo de pó de luar...

Quedo-me sozinho nas noites estiradas, ouvindo o enxurro vivo. Muitas vezes são lágrimas que correm ou emoção que brota com o ruído dum fio de bica cheio de cintilações e rumores. O cair de lágrimas é sempre duma tristeza pacifica... Na noite negra o Hospital entaipa

a cidade: árvores, noras umedecidas, montes solitários, parece que os proíbe aos desgraçados: como um velho sumidouro espera, guarda, construído de pedra e num brasido por dentro, todos os que sofrem, santos, pobres, mulheres perdidas e heróis.

O Pita, embrulhado no seu xale-manta, murmura às vezes ao contemplá-lo:

– A misericórdia humana constrói destes castelos, para que os ricos não assistam ao sofrimento dos pobres. E fê-los de pedra, de granito bem sólido, para que se não ouçam os gritos cá fora.

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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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