7/02/2019

As mulheres (Conto), de Raul Brandão



As mulheres

Ao vir a noite põem-se as prostitutas a cantar; entre as pedras ressequidas e o ruído humano põem-se as prostitutas a cantar. São pobres seres de descalabro e piedade, lama que o homem gera de propósito para o gozo. A treva leva e dispersa essa toada em farrapos, os flocos de tristeza, que são como a alma, a aflição da noite, a soluçar. Noite... Remorsos, sonhos, soou a vossa hora! De blocos negros se constrói outra cidade... Há ainda claridades esparsas, que a Sombra calada, a tatear, de súbito afoga sem rumor. E de entre as meias portas surgem fisionomias como só o remorso as cria: diríeis, de tristes e cansadas, que se vão diluir como as das mortas.

E a hora de o gato-pingado descer as escadas a passos cavos, de o Gebo contar sempre a mesma história desconexa, de os pobres saírem à procura de pão...

No escuro as mulheres falam para se esquecerem. Às vezes somem-se as bocas e da treva irrompe aquela voz de tragédia, como se a treva falasse, ao que dum canto a escuridão responde:

– Ó tu!...

– Que é?

– Lembrou-me agora uma coisa.

– O quê?

– Nesta vida sabeis o que há de pior? É nem a gente poder estar triste.

– Aí começas tu...

Lento e lento, a noite que cai as afoga e na escuridão sente-se pairar a desgraça... Calam-se e depois a mesma voz começa:

– Vem um, quer que eu me ria, vem outro e quer-me triste. Quem entra que se lhe importa?

– E então?

– Nada. Mas inda assim olhai que é triste a gente não poder ao menos lembrar-se...

– De quê?

– Do que lá vai...

– Melhor é a gente não se lembrar do que passou.

– Tomara eu ser morta – afirma outra voz.

– E tu?

– Eu? tu falas para mim? – pergunta uma magra surgindo do escuro. – Tomara eu não ter memória, para não tornar a vê-la, como quando a vi estirada no caixão, por de mim...

– Quem?

– À minha mãe.

– Ah!...

– Pois é... – diz a primeira voz. – Nesta vida a gente não se deve lembrar. Toca a cantar, raparigas...

Cantai!

E as mulheres continuam a cantar, numa toada esfarrapada e lenta. Depois calam-se e uma torna a falar. Dizem sempre as mesmas palavras, mais para fazerem ruído do que para que as escutem. Há uma que ri de tudo. É magra, pálida e gasta. Traz um pacho negro num olho e ri sempre, com um ar de máscara, de si, das outras e de todas as desgraças.

– Eu sou a Mouca – começa ela às risadas. – A minha mãe deitou-me fora era eu pequenina, e eu, se tivesse uma filha, botava-a à roda pra ganhar a vida. Tomaram conta de mim os ladrões, cresci na rua e a minha cama eram as pedras dos portais... Tomaram conta de mim os ladrões. Vidas! vidas!...

– Tu não te calarás!

– Em pequena andei todo um inverno com uma camisa rota. Até foi bom, agora não sinto o frio. Depois moeram-me. Vocês não querem saber? Calcavam-me aos pés por nada. Aprendi. Muito custa a levar a vida... Aos treze anos um ladrão desfrutou-me. Era um velho careca que parecia um São Pedro. Chamavam-lhe o Lesma, vocês hão de ter ouvido falar. A gente só aprende à sua custa. Vidas! vidas!... Eu sou feita de terra, da terra que todo o mundo pisa, mas também já tenho calçado. Ele há desgraças piores, eu sei que há. Já vi gente morrer por não ter uma côdea pra a boca. Olhai que eu conheço a desgraça. Tenho-a encarado... Faz mal quem se abaixa...

Um dia a gente põe-se a gostar dum homem e inda é pior. Que se lhe há de fazer? Todas temos de nos sujeitar, todas somos o mesmo, as ricas e as que não têm uma sede de água. O pior é quando se começa a gostar dum homem...

Vocês sabem o que e o amor? O amor é cada qual ser como um cão. É a gente ser menos que nada e eles serem tudo. Aí têm o que é o amor. Ele a bater-me e eu a dizer cá comigo: – Tu que me bates é porque gostas de mim... – Aí têm o que é o amor, é a gente ser menos que um cão...

Eu escrava, ele o senhor. Acabou-se! todas temos de sofrer.

– Todas. Não há nada pior do que nascer mulher.

– Eu nunca tive sorte. Que me importava a mim que ele me batesse? Punha-me a olhar pra as nódoas do meu corpo e a dizer cá por dentro: – Este é meu amigo.

– Um dia partiu-me um braço, mas a gente é como os cães, que só gostam dum dono que lhes dê pontapés. O pior foi que ele botou-me ao desprezo. Os homens são todos o mesmo... Vidas! vidas! Um dia disse-me: – Estou farto de ti. – E sabeis? nunca mais falou pra mim. Ai, quanto mais se pena p’ramor dum homem mais se lhe vem a querer! – Mas deixa-me gostar de ti... – Vai ele e disse-me: – Fora! – E eu fiquei passada. O meu comer eram lágrimas. E bebia a toda a hora para atormentar uma dor que se me pusera no coração. Mas ele vem! ele torna!... Qual!...

– Como se chamava?

– Que te importa? Não é bom alumiar os mortos. Deixai estar quem está quieto. Ah! se vós o vísseis morto como eu vi!... Ver morto um corpo que se teve nos braços é como ver no caixão um filho. Por mais que a gente grite não lhe dá vida! Trazia sempre no coração a mesma dor... Vai uma vez vesti-me sossegada e fria como defunta e fui ter com ele.

– A que vens? – disse ele. E eu disse-lhe: – A servir-te. – E ri-me. – Já sei que me não podes ver, acabou-se! não me importo. O que te peço é que me deixes servir-vos. Venho ser vossa criada. – Ele pôs-se a rir. Depois veio ela e eu pus-me a rir também – Venho ser vossa moça, quanto me dais de soldada? – Eles cochicharam.

– Onde vocês puserem os pés ponho eu a boca. Aqui estou, aqui me têm. – Eles riram-se de mim. – Anda, escrava! – Vai eu e ria-me. – Que quereis de mim? – Rua, escrava! – e eu ia-me embora. Um dia peguei e dei-lhes rosalgar a comer. Comeram-no. Então, quando o vi morto, pus-me a rir, a rir, que era uma dor do coração. Levaram-me em braços. Na cadeia chamaram-me a perguntas e eu só me ria, Já me doía a cara de tanto rir e via-o sempre morto a meu lado. – Por que o mataste? – e eu desatava a rir-me... Aqui têm, cada qual cumpre o seu fado. Todas temos de nos sujeitar e de sofrer. Eu sou a Mouca – terminou às risadas.

Aquela porta aberta para a tragédia e para o escárnio fica em frente do Hospital. As mulheres dos ladrões e dos soldados moram ao pé da dor. As paredes negras e úmidas – mãos ao roçarem-nas deram-lhes aflição, gritos abalaram-nas – f oram construídas do mesmo sonho e da mesma pedra de que é feita a vida.

Lá dentro, a uma luz enfumaçada e oleosa, as mulheres expõem-se como farrapos de adelo ou máscaras: direis retratos a tressuar de aflição, tanto desespero ressumam as bocas que gargalham. Duas à porta espreitam, uma cisma com a fisionomia petrificada. Outra canta, e a patroa, gorda e desdentada, calcula o ganho. Às vezes prega-lhes horas e horas:

– O amor sabe a vinagre. É pior do que a morte...

Não no queiram, ouviram?

A senhora fala! fala!... Bem triste é achar-se a gente sozinha no mundo – diz uma, derreada e tísica.

– E ter o quê? Escárnio, só se for... – acrescenta outra.

– Eu de mim, se fosse sozinha no mundo, cuido que me afogava.

– Pois andai! andai! – diz a patroa. – Fartai-vos de desgraça. É só fartar! Que sois vós? Menos que terra... Ireis deste mundo fartas de desgraça.

– Antes morrer no rio!

– Eu cá – diz outra – tenho o corpo negro, mas que me importa? Se o meu me deixasse antes queria acabar...
Pela minha salvação que ia direitinha ao rio.

– Depois queixai-vos... – ameaça a velha. – Sereis pior do que arroladas.

– Nem as pancadas dele me doem, e mais o meu fez-me comer terra – afiança outra.

– A gente não tem mais ninguém no mundo. Quem quer saber duma desinfeliz?

– A gente não tem pai nem mãe, nem fôlego vivo.

– Se choro, os outros riem-se. Quem entra e sai que se importa?

– E ninguém neste mundo pode chorar sozinho...

– Eu cá – diz a Mouca – eu cá estou tão habituada a que me dêem dinheiro, que se o meu amigo fica comigo, escondo moedas no lençol... Quando acordo e as encontro, parece que me pagaram.

As outras riem-se com risos que destoam, e a patroa prega-lhes:

– Vocês nem sequer vêem... O que aconteceu à Maria? Afogou-se e o amante ri. Hélia lá foi pra o hospital. É morta. E todas morrem se se deixam ter coração.

– Às vezes mais vale morrer.

– Morrer!... – exclama a tísica.

– Eu já me matei... E depois? Foi quando me vi sozinha no mundo. Ele tinha-me desprezado. Peguei e bebi um quarteirão de aguardente com lumes. Pensais que estou arrependida? Ah, se a senhora soubesse o que se sente!... Quando me vieram dizer – foi a Mouca – que o meu amigo estava com a outra, foi como se tornasse a ressurgir diante de mim a mãe que eu matei à força de  lágrimas, por me ver na triste vida. Nem podia gritar. Tinham-me secado os gritos aqui – na boca... Saí, andei...

A porta dela estava fechada e ali fiquei até de manhã ao frio. Os homens que passavam diziam o que lhes parecia, porque ninguém ideia o que cada um traz dentro do coração. Cismei, passei a noite ora a cismar, ora a chorar. Nesse dia pôs-me o corpo negro, como este lenço que trago na cabeça. Olhai... Ainda tenho as marcas. Estás só na cova me passam. – Farta-te, se queres, mas não me desprezes... – Vai ele e disse-me: – Fica pra aí, estupor, que te não posso ver – Vejam vocês!... Se isto é assim no mundo, se a gente cá vem pra isto, para nos deitarem fora, e não há mais nada, era melhor morrer... E antes tivesse morrido pra não ter mais que penar...

– O hospital está à espera, raparigas – diz a patroa do canto.

– Ouvi dizer que os estudantes cortam a gente pra estudar?...

– E a mim que me importa?

– Eu já ouvi a um... E o que eles se riem uns com os outros!...

– Depois da morte a gente não sente.

– Quem é pobre acho que vai sempre pra eles aprenderem a estudar.

– Pois a mim é o que me entristece... O meu pobre corpo ser retalhadinho!

– Lá está o hospital à espera, raparigas!...

– Tu não te calarás!

Riem-se, uma fica cismática e a patroa continua:

– Filhas, ainda podeis enriquecer. O que é preciso muita experiência da vida. Não há nada pior do que envelhecer pobre... O que eles se riem! E põem-se a rir até do nosso ódio, ouviram?

– Quem nasce pra esta vida mais valia morrer.

– E tu pra que vieste?

– Foi o meu fado.

E a velha continua:

– Haveis de querer comer e tereis...

– O quê – diz uma, ansiosa.

– Pedras.

– Acabou-se! – diz outra. E fica cismática.

– Mais nos valia morrer.

– Mais valia.

– Andai, andai! Lá tendes todas no hospital uma enxerga e o lençol. E o cemitério pode sempre com gente. Aquele nunca se farta.

– Tem sempre fome – murmura do lado uma sorrindo.

– Pois tem – afiança a companheira.

– Deixá-lo ter! – exclama a Mouca.

– Envelhecei pobres e vereis! vós vereis!... – ameaça a patroa pondo-se de pé.

– O quê, senhora?

– Para sempre, traz-se para sempre uma pedra no coração sem se poder arrancar.

– Então para que nasce a gente? Só para sofrer? – pergunta Sofia.

– Só. A este mundo vem-se para sofrer.

– Ah!...

– Enganai-os. Tratai de juntar, de juntar dinheiro. O resto tudo é fingido...

Mas uma, triste e magra, a tísica:

– Nesta vida todos nos rebaixam e a gente precisa de encontrar alguém, um pobre como a gente...

– Inda que seja um ladrão... – interrompe Luísa.

– Ao pé de quem se não sinta desprezada.

– Meteu-se a gente na triste vida e nunca mais pode sair – afiança a outra. – Olhai que me lembro... Cada qual aqui é menos que nada, é como a terra...

De dia pela porta escancarada vê-se o banco do hospital. Nada mais puído do que essas míseras tábuas de pinho secas, gastas, distinguidas, e nada também mais comovente. Vivem, estremecem. Há coisas que, à força de serem tocadas pelas mãos humanas, ganham alma, criam fisionomia. Antes da morte ali tombaram os corpos que, como uma pua, a dor brocou. Aquelas tábuas mirradas, de se sentirem a toda a hora roçadas pelas mãos de náufragos (todos os que entram no hospital ali passam, santos, poetas, pobres com a boca cheia de gritos), começaram uma outra existência.

Foi a árvore arrancada à terra para amparar os pobres. É ainda mais bela do que levantada no topo do solitário monte, ao nevão, ao sol, à tempestade, às estrelas. Ei-la enfim somente erguida para a dor. Tábuas que já deram sombra na floresta, embebidas de seiva e de azul, vieram servir de encosto a míseros: têm nódoas de sangue, dedadas de aflição e suor de desgraçados que se entranhou na madeira.




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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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