As mulheres
Ao vir a noite põem-se as
prostitutas a cantar; entre as pedras ressequidas e o ruído humano põem-se as
prostitutas a cantar. São pobres seres de descalabro e piedade, lama que o
homem gera de propósito para o gozo. A treva leva e dispersa essa toada em
farrapos, os flocos de tristeza, que são como a alma, a aflição da noite, a
soluçar. Noite... Remorsos, sonhos, soou a vossa hora! De blocos negros se
constrói outra cidade... Há ainda claridades esparsas, que a Sombra calada, a
tatear, de súbito afoga sem rumor. E de entre as meias portas surgem fisionomias
como só o remorso as cria: diríeis, de tristes e cansadas, que se vão diluir
como as das mortas.
E a hora de o gato-pingado
descer as escadas a passos cavos, de o Gebo contar sempre a mesma história
desconexa, de os pobres saírem à procura de pão...
No escuro as mulheres falam
para se esquecerem. Às vezes somem-se as bocas e da treva irrompe aquela voz de
tragédia, como se a treva falasse, ao que dum canto a escuridão responde:
– Ó tu!...
– Que é?
– Lembrou-me agora uma
coisa.
– O quê?
– Nesta vida sabeis o que
há de pior? É nem a gente poder estar triste.
– Aí começas tu...
Lento e lento, a noite que
cai as afoga e na escuridão sente-se pairar a desgraça... Calam-se e depois a
mesma voz começa:
– Vem um, quer que eu me
ria, vem outro e quer-me triste. Quem entra que se lhe importa?
– E então?
– Nada. Mas inda assim
olhai que é triste a gente não poder ao menos lembrar-se...
– De quê?
– Do que lá vai...
– Melhor é a gente não se
lembrar do que passou.
– Tomara eu ser morta – afirma
outra voz.
– E tu?
– Eu? tu falas para mim? –
pergunta uma magra surgindo do escuro. – Tomara eu não ter memória, para não
tornar a vê-la, como quando a vi estirada no caixão, por vê de mim...
– Quem?
– À minha mãe.
– Ah!...
– Pois é... – diz a
primeira voz. – Nesta vida a gente não se deve lembrar. Toca a cantar,
raparigas...
Cantai!
E as mulheres continuam a
cantar, numa toada esfarrapada e lenta. Depois calam-se e
uma torna a falar. Dizem sempre as mesmas palavras, mais para fazerem ruído do
que para que as escutem. Há uma que ri de tudo. É magra, pálida e gasta. Traz
um pacho negro num olho e ri sempre, com um ar de máscara, de si, das outras e
de todas as desgraças.
– Eu sou a Mouca – começa
ela às risadas. – A minha mãe deitou-me fora era eu pequenina, e eu, se tivesse
uma filha, botava-a à roda pra ganhar a vida. Tomaram conta de mim os ladrões,
cresci na rua e a minha cama eram as pedras dos portais... Tomaram conta de mim
os ladrões. Vidas! vidas!...
– Tu não te calarás!
– Em pequena andei todo um
inverno com uma camisa rota. Até foi bom, agora não sinto o frio. Depois
moeram-me. Vocês não querem saber? Calcavam-me aos pés por nada. Aprendi. Muito
custa a levar a vida... Aos treze anos um ladrão desfrutou-me. Era um velho careca
que parecia um São Pedro. Chamavam-lhe o Lesma, vocês hão de ter ouvido falar.
A gente só aprende à sua custa. Vidas! vidas!... Eu sou feita de terra, da
terra que todo o mundo pisa, mas também já tenho calçado. Ele há desgraças
piores, eu sei que há. Já vi gente morrer por não ter uma côdea pra a boca.
Olhai que eu conheço a desgraça. Tenho-a encarado... Faz mal quem se abaixa...
Um dia a gente põe-se a
gostar dum homem e inda é pior. Que se lhe há de fazer? Todas temos de nos
sujeitar, todas somos o mesmo, as ricas e as que não têm uma sede
de água. O pior é quando se começa a gostar dum homem...
Vocês sabem o que e o amor?
O amor é cada qual ser como um cão. É a gente ser menos que nada e eles serem
tudo. Aí têm o que é o amor. Ele a bater-me e eu a dizer cá comigo: – Tu que me
bates é porque gostas de mim... – Aí têm o que é o amor, é a gente ser menos
que um cão...
Eu escrava, ele o senhor.
Acabou-se! todas temos de sofrer.
– Todas. Não há nada pior
do que nascer mulher.
– Eu nunca tive sorte. Que
me importava a mim que ele me batesse? Punha-me a olhar pra as nódoas do meu
corpo e a dizer cá por dentro: – Este é meu amigo.
– Um dia partiu-me um
braço, mas a gente é como os cães, que só gostam dum dono que lhes dê pontapés.
O pior foi que ele botou-me ao desprezo. Os homens são todos o mesmo... Vidas!
vidas! Um dia disse-me: – Estou farto de ti. – E sabeis? nunca mais falou pra
mim. Ai, quanto mais se pena p’ramor dum homem mais se lhe vem a querer! – Mas
deixa-me gostar de ti... – Vai ele e disse-me: – Fora! – E eu fiquei passada. O
meu comer eram lágrimas. E bebia a toda a hora para atormentar uma dor que se
me pusera no coração. Mas ele vem! ele torna!... Qual!...
– Como se chamava?
– Que te importa? Não é bom
alumiar os mortos. Deixai estar quem está quieto. Ah! se vós o vísseis morto como eu vi!... Ver morto um corpo que se teve nos braços é como
ver no caixão um filho. Por mais que a gente grite não lhe dá vida! Trazia
sempre no coração a mesma dor... Vai uma vez vesti-me sossegada e fria como
defunta e fui ter com ele.
– A que vens? – disse ele.
E eu disse-lhe: – A servir-te. – E ri-me. – Já sei que me não podes ver,
acabou-se! não me importo. O que te peço é que me deixes servir-vos. Venho ser
vossa criada. – Ele pôs-se a rir. Depois veio ela e eu pus-me a rir também –
Venho ser vossa moça, quanto me dais de soldada? – Eles cochicharam.
– Onde vocês puserem os pés
ponho eu a boca. Aqui estou, aqui me têm. – Eles riram-se de mim. – Anda,
escrava! – Vai eu e ria-me. – Que quereis de mim? – Rua, escrava! – e eu ia-me
embora. Um dia peguei e dei-lhes rosalgar a comer. Comeram-no. Então, quando o
vi morto, pus-me a rir, a rir, que era uma dor do coração. Levaram-me em
braços. Na cadeia chamaram-me a perguntas e eu só me ria, Já me doía a cara de
tanto rir e via-o sempre morto a meu lado. – Por que o mataste? – e eu desatava
a rir-me... Aqui têm, cada qual cumpre o seu fado. Todas temos de nos sujeitar
e de sofrer. Eu sou a Mouca – terminou às risadas.
Aquela porta aberta para a
tragédia e para o escárnio fica em frente do Hospital. As mulheres dos ladrões
e dos soldados moram ao pé da dor. As paredes negras e úmidas – mãos ao
roçarem-nas deram-lhes aflição, gritos abalaram-nas – f oram
construídas do mesmo sonho e da mesma pedra de que é feita a vida.
Lá dentro, a uma luz
enfumaçada e oleosa, as mulheres expõem-se como farrapos de adelo ou máscaras:
direis retratos a tressuar de aflição, tanto desespero ressumam as bocas que
gargalham. Duas à porta espreitam, uma cisma com a fisionomia petrificada.
Outra canta, e a patroa, gorda e desdentada, calcula o ganho. Às vezes
prega-lhes horas e horas:
– O amor sabe a vinagre. É
pior do que a morte...
Não no queiram, ouviram?
A senhora fala! fala!...
Bem triste é achar-se a gente sozinha no mundo – diz uma, derreada e tísica.
– E ter o quê? Escárnio, só
se for... – acrescenta outra.
– Eu de mim, se fosse
sozinha no mundo, cuido que me afogava.
– Pois andai! andai! – diz
a patroa. – Fartai-vos de desgraça. É só fartar! Que sois vós? Menos que
terra... Ireis deste mundo fartas de desgraça.
– Antes morrer no rio!
– Eu cá – diz outra – tenho
o corpo negro, mas que me importa? Se o meu me deixasse antes queria acabar...
Pela minha salvação que ia
direitinha ao rio.
– Depois queixai-vos... – ameaça
a velha. – Sereis pior do que arroladas.
– A gente não tem mais ninguém no mundo. Quem quer saber duma desinfeliz?
– A gente não tem pai nem
mãe, nem fôlego vivo.
– Se choro, os outros
riem-se. Quem entra e sai que se importa?
– E ninguém neste mundo
pode chorar sozinho...
– Eu cá – diz a Mouca – eu
cá estou tão habituada a que me dêem dinheiro, que se o meu amigo fica comigo,
escondo moedas no lençol... Quando acordo e as encontro, parece que me pagaram.
As outras riem-se com risos
que destoam, e a patroa prega-lhes:
– Vocês nem sequer vêem...
O que aconteceu à Maria? Afogou-se e o amante ri. Hélia lá foi pra o hospital.
É morta. E todas morrem se se deixam ter coração.
– Às vezes mais vale
morrer.
– Morrer!... – exclama a
tísica.
– Eu já me matei... E
depois? Foi quando me vi sozinha no mundo. Ele tinha-me desprezado. Peguei e
bebi um quarteirão de aguardente com lumes. Pensais que estou arrependida? Ah,
se a senhora soubesse o que se sente!... Quando me vieram dizer – foi a Mouca –
que o meu amigo estava com a outra, foi como se tornasse a ressurgir diante de
mim a mãe que eu matei à força de lágrimas,
por me ver na triste vida. Nem podia gritar. Tinham-me secado os gritos aqui –
na boca... Saí, andei...
A porta dela estava fechada
e ali fiquei até de manhã ao frio. Os homens que passavam
diziam o que lhes parecia, porque ninguém ideia o que cada um traz dentro do
coração. Cismei, passei a noite ora a cismar, ora a chorar. Nesse dia pôs-me o
corpo negro, como este lenço que trago na cabeça. Olhai... Ainda tenho as
marcas. Estás só na cova me passam. – Farta-te, se queres, mas não me
desprezes... – Vai ele e disse-me: – Fica pra aí, estupor, que te não posso ver
– Vejam vocês!... Se isto é assim no mundo, se a gente cá vem pra isto, para
nos deitarem fora, e não há mais nada, era melhor morrer... E antes tivesse
morrido pra não ter mais que penar...
– O hospital está à espera,
raparigas – diz a patroa do canto.
– Ouvi dizer que os
estudantes cortam a gente pra estudar?...
– E a mim que me importa?
– Eu já ouvi a um... E o
que eles se riem uns com os outros!...
– Depois da morte a gente
não sente.
– Quem é pobre acho que vai
sempre pra eles aprenderem a estudar.
– Pois a mim é o que me
entristece... O meu pobre corpo ser retalhadinho!
– Lá está o hospital à
espera, raparigas!...
– Tu não te calarás!
Riem-se, uma fica cismática
e a patroa continua:
– Filhas, ainda podeis
enriquecer. O que é preciso muita experiência da vida. Não
há nada pior do que envelhecer pobre... O que eles se riem! E põem-se a rir até
do nosso ódio, ouviram?
– Quem nasce pra esta vida
mais valia morrer.
– E tu pra que vieste?
– Foi o meu fado.
E a velha continua:
– Haveis de querer comer e
tereis...
– O quê – diz uma, ansiosa.
– Pedras.
– Acabou-se! – diz outra. E
fica cismática.
– Mais nos valia morrer.
– Mais valia.
– Andai, andai! Lá tendes
todas no hospital uma enxerga e o lençol. E o cemitério pode sempre com gente.
Aquele nunca se farta.
– Tem sempre fome – murmura
do lado uma sorrindo.
– Pois tem – afiança a
companheira.
– Deixá-lo ter! – exclama a
Mouca.
– Envelhecei pobres e
vereis! vós vereis!... – ameaça a patroa pondo-se de pé.
– O quê, senhora?
– Para sempre, traz-se para
sempre uma pedra no coração sem se poder arrancar.
– Então para que nasce a
gente? Só para sofrer? – pergunta Sofia.
– Só. A este mundo vem-se
para sofrer.
– Ah!...
– Enganai-os. Tratai de
juntar, de juntar dinheiro. O resto tudo é fingido...
Mas uma, triste e magra, a tísica:
– Nesta vida todos nos
rebaixam e a gente precisa de encontrar alguém, um pobre como a gente...
– Inda que seja um
ladrão... – interrompe Luísa.
– Ao pé de quem se não
sinta desprezada.
– Meteu-se a gente na
triste vida e nunca mais pode sair – afiança a outra. – Olhai que me lembro...
Cada qual aqui é menos que nada, é como a terra...
De dia pela porta
escancarada vê-se o banco do hospital. Nada mais puído do que essas
míseras tábuas de pinho secas, gastas, distinguidas, e nada também mais
comovente. Vivem, estremecem. Há coisas que, à força de serem tocadas pelas
mãos humanas, ganham alma, criam fisionomia. Antes da morte ali tombaram os
corpos que, como uma pua, a dor brocou. Aquelas tábuas mirradas, de se sentirem
a toda a hora roçadas pelas mãos de náufragos (todos os que entram no hospital
ali passam, santos, poetas, pobres com a boca cheia de gritos), começaram uma
outra existência.
Foi a árvore arrancada à
terra para amparar os pobres. É ainda mais bela do que levantada no topo do
solitário monte, ao nevão, ao sol, à tempestade, às estrelas. Ei-la enfim
somente erguida para a dor. Tábuas que já deram sombra na
floresta, embebidas de seiva e de azul, vieram servir de encosto a míseros: têm
nódoas de sangue, dedadas de aflição e suor de desgraçados que se entranhou na
madeira.
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Pesquisa, transcrição e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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