7/02/2019

O Gabiru (Conto), de Raul Brandão



O Gabiru

No último andar do prédio mora o Gabiru, um solitário filósofo, esguio e triste como um enterro. Sabe tudo e nunca viveu. O que existe para lá do Hospital é para ele um grande mar ignorado e verde.

A realidade também não na entende: da vida só se fartou com sofreguidão desta fonte que transborda – o sonho. Tem o olhar estático e, metido na trapeira com ignóbeis calhamaços, deixa correr as suas ideias à solta como os rios. Assim, metafísico e pobre, de raras palavras, deitou-se a armar a Mouca, escárnio de soldados.

Nasceu para sonhar. Tem um suspiro de alívio quando se fecha na mansarda e exclama: – Vou idear!...

– Sabe palavras, teorias, cartapácios, e nunca viu ao pé os rios, os montes, nem as árvores. Remexe em ideias profundas e nunca encontrou a realidade.

É assim feliz e triste. Posto à janela do cubículo espreita por cima do Hospital, sente correr o doirado jorro dos dias, cisma num portentoso sonho e ama. Entre as ideias que vai tecendo surge sempre aquela figura trágica, que todo o dia ri com os ladrões e os soldados...

Ignora a vida. Alguma coisa, porém, existe de imaterial – emoção violeta e ouro – que o rodeia, quase o toca e súbito foge magoada e aos soluços. E fio a fio vai tecendo e constrói a sua teoria:

"Oh como eu tremo diante das árvores, do luar que corre branco e sem murmúrio, da natureza esplêndida que adivinho para além dos muros do Hospital!... Passo por doido e na verdade quase grito de pavor diante do espantoso universo. Olhai a treva a escutar, o mistério, a água que brota sem ruído, a árvore de braços erguidos, o caliginoso mar...

O homem passa indiferente, mas eu sinto-me enlouquecer diante das coisas mais simples: dum farrapo de nuvem como um sudário a rasto, dum raio de luz em pó, todo de ouro vivo, que entra no meu quarto. Nunca me pude habituar a olhar a natureza cara a cara. Isto! que significação tem isto? E um sonho, um grito de beleza, uma alma? Montes verdes e etéreos lá ao longe, constelações infinitas, névoa que do mar nasce e sobre o mar vai, como um portentoso rolo, como um giganteu fantasma...

E não adquiro o hábito. Todas as manhãs é como se pela vez primeira me achasse diante da monstruosa natura – verde, ouro, azul, com os seus rios, florestas, o mar a bramir e árvores que são seres, vida que pressinto extraordinária e que nunca vi ao pé!... Por isso, sobretudo nestes dias de inverno, em que anda uma prodigiosa voz de Adamastor a pregar à terra e às coisas dilaceradas, eu me ponho, escondido e só, a discutir o enigma...

Devo, porém, notá-lo: eu sou uma criatura singular. Há até quem me suponha doido. Todos os que são apenas restos de sonhos vivos e despedaçados como eu, têm este feitio encolhido e transido. A esta hora da noite em que o universo parece desabitado e em que até o rumor da pena no papel me faz medo, fecho-me sobre mim mesmo e escuto-me: alguma coisa, que não sou eu próprio, se põe então a murmurar baixinho. E eis-me perdido no canto duma negra trapeira, encolhido e esguio, a sonhar em quê? Naquele universo verde e ígneo que está para lá das pedras...

Desabituei-me de falar, mas sonho. Há vozes esplêndidas dentro em mim; de mim brotam árvores, estátuas mutiladas, pedaços vivos de sonho. Oh eu creio que cada criatura é um composto de almas de montes, de pedras, de águas, e creio também que existe uma misteriosa ligação entre o homem e os mundos. Estou preso às estrelas, àquela confusão de tintas e murmúrios e aos cardos humildes.

Dizem rindo se passo encolhido e esguio:

– Lá vai o Gabiru!

Deixá-lo dizer! Eu sou mais feliz do que os que riem, e antes quero conviver com os desgraçados do que com os outros. Deles tiro emoção para o meu sonho. Depois fecho-me nesta trapeira alta, construída nos telhados e donde se vêem seres admiráveis: labaredas verdes que se agitam – e são árvores; nuvens pousadas sobre a terra com ouro a flux ou então dum violeta desfalecido – e são montes; e rolos que correm vivos e fluidos – e são rios. Muito tempo levei a decifrar-lhes o nome. Nenhum dos desgraçados o sabia, porque o Hospital enorme entaipa a cidade, e essa vida úmida, torrentes de detritos, árvores, primaveras, gritos de sol, é desconhecida a todos os que sofrem lá em baixo, entre o granito ressequido. Só outro pobre, o Pita, da trapeira contígua vê como eu a prodigiosa natureza – a Mãe.

Oh! e há horas, quando uma neblina de sol cai sobre as coisas estarrecidas, todas verdes, em que eu quase toco o mistério. Ouço as palavras da natureza numa linguagem de que não compreendo o sentido. Os sons são sílabas perdidas, umas de ouro, outras verdes. O ar é fino, alma empoada de luar, as árvores desmaiam e os grandes montes pálidos, onde o sol deixou fuligem, que vai esmorecendo até ao vir da noite, falam baixinho, entontecidos. Mais tímido é o murmúrio das fontes, como se não quisessem perturbar o espantoso diálogo.

É esta a melhor hora para se ouvir e em que eu quase entendo as palavras, Há coisas desfalecidas: árvores vão tombar de emoção e de tudo o que existe sai uma prodigiosa alma etérea e viva, que me envolve e toca, e que fala! que vai falar!...

Donde nasce esta beleza? donde vem tudo isto?...

Se um homem cai prostrado e grita, as suas palavras ígneas são apenas sons que, misturados a outros gritos de dor, formam palavras dum monólogo enorme. E credes que existam montanhas, águias, o mar, crede-lo por ventura?... São sílabas, são vozes da Terra, que entra no diálogo. E mundos, estrelas, são palavras daquele que no infinito prega. É sempre a mesma força, a única força que cria a beleza e o sonho, a força donde brota a Vida.

Eu tinha visto que a dor era sempre necessária para se produzir alguma coisa de belo: para se agarrar um pedaço de sonho, que, apenas entrevisto, foge; para que nas nossas mãos esquálidas fique um farrapo dessa figura de prodígio; para que a vida tenha um fim; para amar; para criar; para que alguma coisa de duradouro reste. Num grito existe sempre viva uma porção de beleza. Da cova nascem coisas materiais, formas, árvores, nuvens
– da dor a beleza absoluta.

E com que fim? dir-me-ão.

Imaginem um estatuário: para compor uma marmórea figura, para realizar um fantasma entrevisto, precisa de sofrer. Depois tritura o barro, petrifica a dor. E acaso pergunta se o barro sofre? Assim Deus esmaga o barro que nós somos para construir alguma coisa de extraordinário: mundos, a Vida e a Morte, alma infinita que tudo atravessa.

De que precisam os poetas para fazer uma obra de gênio? De dor. O sofrimento cria. Lembram-se das figuras de mármore, para sempre debruçadas sobre os túmulos antigos? O luar que vem pela rosácea tocando-as dá-lhes uma vida de sonho, fá-las todas de poalha; estremecem, levantam voo, dir-se-ia. Pois a dor, fio a fio, como o luar, dá vida ao sonho.

Para se criar é preciso sofrer. Hoje e sempre só a dor é que dá vida às coisas inanimadas. Com um escopro e um tronco inerte faz-se uma obra admirável, se o escultor sofreu. Mais: com palavras, com sons perdidos, com imaterialidades, consegue-se este milagre: fazer rir, fazer sonhar, arrancar lágrimas a outras criaturas. Com as simples e secas letras do abecedário, um desgraçado com gênio, metido numa água-furtada, edifica uma coisa eterna, uma construção mais sólida e mais bela do que se fosse arrancar os materiais ao coração das montanhas. O que é então a dor, milagre extraordinário, que consegue dar vida às fragas? o que é esse assombroso fluido, que se comunica, alma arrancada da própria alma e que se pode repartir como o pão? Nunca houve sob o sol criatura que sofresse da verdadeira dor, cujo sofrimento não consolasse ou salvasse. Até as mais humildes, como árvores que ainda depois de mirradas vão aquecer e alumiar os pobres.

A dor dá a vida e não é a própria vida: cria, redime, obra prodígios e nada há que se comunique, que convença, que torne os homens irmãos, como ela... Para onde vão pois todos esses gritos, unidos num só grito? Visto que nada se perde, que é que se sustenta no infinito com essa enxurrada de lágrimas? Deus?

Por muito tempo escutei o ruído de vozes, de exasperos, de gritos de criaturas. Vinham da guerra, do Hospital, da miséria humana.

E desse mar espezinhado nasciam clarões, as nebulosas donde surgem mundos. Esse eterno rio de gritos, a correr desde que o homem existe, vai desaguar no infinito.

E que a dor é a única força que verdadeiramente cria e destrói: é a Força. Alimenta Deus e o limo. É um atlântico de fogo, é o espírito do universo. Cria claridades na alma dos desgraçados e faz nascer montanhas.

As árvores são emoções da terra.

Sonhai! sofrei!

Este mundo é talvez, como disse um filósofo desconhecido, uma gota caída dum oceano infinito de beleza.

O universo é o sonho dolorido de Deus.

Nada se perde. A alma, as ideias e as emoções, fazem parte da força que faz florir o céu e os humildes pomares ignorados.

Eu coleciono a dor. Passo a vida a juntar farrapos desse manto em fogo.

O mundo é misterioso, cheio de gritos. A cada passo um túmulo donde renasce um amálgama, uma poeira verde, azul, doirada, cova onde o Desconhecido remexe formas: o mar, as criaturas, as pedras, as tempestades, tudo vivo e a falar! O homem passa inconsciente, mas eu tremo de pavor.

Estas pobres criaturas que vivem no mesmo prédio em que eu habito, ladrões, filósofos, coveiros, mulheres perdidas, são esmagadas para que alguma coisa se crie. Geram o mistério e o mar bravo da dor. Sob a nossa vista indiferente a cada passo se cumpre um milagre: sol, água a nascer, pinheiros bravios e vivos!...

Escutai... As coisas choram. Nesta noite de frio inverno – ventania – o que as coisas dirão!... – o vento despedaça-as e é sempre triste ouvir cair tantas lágrimas. Por momentos quedam-se numa quietação, como se ficassem a escutar ou a falar baixinho entre si...

Eu tremo e, para me esquecer, deito-me a escrever o meu livro A Árvore. E do lodo destas coisas humildes que eu construo a minha estátua disforme...

Ora uma tarde destas, embebido nos meus pensamentos como num largo horizonte, não reparei que pela porta aberta alguém entrara. De forma que tive um sobressalto, ao ouvir a meu lado numa voz pausada:

– Maquinações filosóficas, meu preclaro amigo...

– Hein?

Era o Pita, mas o Pita transfigurado e triste; o Pita com dentes de menos e não sei que doloroso sorriso; o Pita mais velho e mais sórdido.

– Maquinações filosóficas, meu preclaro amigo.

A realidade é triste e amarga. Isto que daqui vê e não compreende, árvores, montes e águas, é no fundo tão revolvido e espezinhado como o lodo humano. Vem uma raiz e despedaça outra raiz, um braço que se crie empurra logo outro braço. Cada monte gera tanto ódio como o coração do homem.

– Porventura o amigo já viu árvores ao pé? Eu só a do saguão.

– Sim, conheço-as não só dos bons autores, como de ter dormido à sua sombra movediça e fresca... São diferentes: são vivas e enormes...

– E o mar?

– O mar, que daqui vê ao longe, todo de poeira verde, é trágico e feroz. Brame de fúria, despedaça. É esverdeado e cheio de cóleras...

– E a Mãe, a natureza?

– Um amálgama, um cadinho cheio de gritos: formas revolvidas e trituradas, bocas que não podem gritar. Veja...

Para lá do Hospital havia ainda trêmulos de luz, raios esquecidos de sol emaranhados nas árvores, presos nos espinhos do monte. Dir-se-ia no entanto que a vida redobrava; cresciam e murmuravam os pinheiros, gorgolejava a seiva ao trepar nos troncos. A água corria num ruído mais vivo, e a terra, que o sol queimara, bebia-a toda dum trago. As noras cansadas pingavam o seu último suor, e da noite que descera irrompia um murmúrio envolto em sombras, a voz das árvores, dos rios e montanhas."




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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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