7/11/2019

O segundo tempo (História), de Monteiro Lobato



O segundo tempo
– Estou imaginando a cara desse Dario! disse Pedrinho. Apanhou de dez a zero...
– Realmente, meu filho. Ele, o soberano do maior império do mundo, derrotado por um punhadinho de gregos! Mas, não! A coisa não ficaria assim! O rei persa iria formar nova esquadra e novo exército – uma esquadra como jamais existiu outra e um exército de encher de assombro a todos e levar de vencida quantas Grécias surgissem. Dario jurou e rejurou e bufou como um tigre logrado por uma raposa. E vários anos passou a preparar o grande exército. Nisto, morreu.
– Morreu com certeza de raiva recolhida, observou a menina.
– Seja do que for, morreu e foi substituído pelo seu filho Xerxes, que do pai herdara não só o trono como também o ódio aos gregos e a determinação de destruí-los. Xerxes continuou os grandes preparativos de guerra começamos por Dario.
Mas os gregos, animados pela vitória, estavam mais do que resolvidos a não se deixarem bater em hipótese nenhuma, e como tinham a certeza de que os persas voltariam, preparam-se da melhor maneira.
Por esse tempo o povo de Atenas vacilava entre dois chefes igualmente grandes. Temístocles e Aristides. O primeiro queria por prevenção se construísse uma esquadra para a próxima guerra, e Aristides era de parecer contrário. A luta pegou fogo entre os partidos dos dois candidatos, mas como o partido de Temístocles se tornasse maior, Aristides acabou no ostracismo, apesar da sua grande fama de homem perfeito. Chamavam-lhe Aristides o Justo.
No dia da votação um homem que não sabia escrever aproximou-se de Aristides com uma casca de ostra na mão e pediu-lhe que escrevesse nela um nome. "Que nome?" perguntou Aristides. "Aristides", respondeu o homem. Sem dar-se a conhecer, o grande ateniense perguntou-lhe: "Por que querer condenar este homem ao ostracismo? Cometeu ele por acaso alguma falta?" "Oh, não!" respondeu o eleitor. "Ele não cometeu nenhuma falta, mas..." e suspirou. "Mas, que?" insistiu Aristides. "Mas estou cansado de ouvir o povo chamar-lhe sempre o Justo, o Justo..." concluiu o homem.
Aristides conhecia o caráter dos gregos e portanto não se admirou daquela inconsequência. Limitou-se a escrever o seu próprio nome na casca de ostra. Concluída a votação, foi verificado haver na urna o número de votos necessário para a sua condenação – e Aristides foi para ostracismo.
– Que grande injustiça! exclamou Pedrinho indignado com os atenienses. Isso é o cúmulo dos cúmulos!
– E que o grande acero político! disse dona Benta. O afastamento de Aristides pôs toda a força do lado de Temístocles, que conseguiu, afinal, impor a sua ideia da esquadra e mais preparativos para a possível guerra. E Temístocles acertou. A guerra veio. Dez anos depois da batalha de Maratona os persas reiniciaram a sua marcha contra a Grécia. Desta vez não com cento e vinte mil homens, mas com dois milhões.
– Dois milhões, vovó? exclamou o menino, espantado.
– Parece que mesmo um pouco meio muito, como diz o compadre Teodorico. Em todo o caso, é essa a contagem dos historiadores da época. Mas semelhante exército era em excesso numeroso para vir por mar. Seriam necessárias mais trirremes do que as havia no mundo inteiro. Por isso Xerxes determinou que a marcha fosse por terra, embora mesmo por terra houvesse um bocadinho d'água a separá-lo dos gregos: o estreito que hoje se chama Dardanelos e naquele tempos se chamava Helesponto.
– De que largura era esse estreito, vovó?
– Apenas um quilômetro e meio.
– E Xerxes passou?
– Quase. Xerxes construiu uma ponte de barcos, isto é, foi colocando barcos um encostado ao outro até alcançar o lado grego; depois estendeu por cima um tabuado como de ponte. Mas assim que concluiu a obra, uma tremenda tempestade sobreveio e arrasou tudo.
A fúria de Xerxes foi tamanha que pegou de um chicote e pôs-se a surrar o mar como se o mar fosse um de seus escravos. Em seguida mandou fazer uma nova ponte. Desta vez não houve tempestade e o exército pôde avançar. Sete dias e sete noites levou passando, em massa cerrada. A esquadra, que era enorme, o seguiu. Quando as forças alcançaram a terra da Grécia...
Dona Benta teve de parar nesse ponto. O visconde, que desde o seu "renascimento" não dissera ainda uma só palavra, tinha dado um grito. Correram todos. Que foi? Que não foi? "Foi Emília, eu vi" disse tia Nastácia aparecendo da cozinha, com a colher de pau na mão. "A malvada deu em cima dele com um tal ostracismo. Não sei o que é, mas deve doer muito..."

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José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)

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