No dia 23 de julho de 1866, um jornal
de Lisboa inseria a seguinte notícia:
"Vem de Coimbra para Lisboa, com
a sua recente carta de formatura o novo bacharel, Dr. José Maria Eça de Queirós".
Ia lançar-se no profissionalismo da
advocacia, aquele que mais tarde havia de ser um dos grandes da literatura
nacional. É possível que o seu talento o tivesse celebrizado também no foro,
mas abençoada a hora em que a caneta de Eça de Queirós, em vez de escrever
contestações e minutas, deliberara escrever romances, artigos, contos, sueltos,
numa orgia de talento que inundou o século.
Em 1889, entra triunfante nos Vencidos da Vida. As suas definições são
labaredas de espírito. Alguém junto dele elogia a função da indústria bancária
no desenvolvimento da riqueza e logo Eça, ironicamente:
— Sim, na verdade os Bancos seriam
instituições perfeitas, se nós pudéssemos ir lá buscar dinheiro, sem primeiro o
termos lá posto.
Eça, com o seu ar catedrático, era
encantador no convívio. Só a doença o forçou a abdicar da sua categoria de gourmet incorrigível. Adorava fazer
bacalhau de rebolada e já no fim da vida, quase sustentado a uma água termal
francesa, de vez em quando, não resistia a uma salada de lagosta. Seguiam-se
dias de sofrimento.
Uma vez, esteve hospedado num hotel do
Porto, e ao pedir a conta, verificou que estava excessivamente "salgada".
Eça chamou o gerente:
— Esta conta está incompleta. Foi, de
certo, esquecimento.
— Vossa excelência dirá, senhor doutor,
é possível...
— É que esta madrugada, quando eu
entrei, elucidou o romancista, o porteiro deu-me as boas-noites, e eu não vejo cá
isso metido na conta.
O gerente embatucou.
***
Fialho, que não morria de amores pelo
autor do Primo Basílio, escreveu a
seu respeito: "Conheci-o há pouco mais de um ano, num gabinete do
restaurante, onde ele ia cear todas as noites. Espírito adorável bordado de
infantilidades sabiamente permitidas para os efeitos cênicos da sedução, e
sobretudo esse privilégio sagaz de não perder um milímetro da estatura pela
intimidade e pela franqueza, prodigalizados em volta".
Mais tarde, o autor dos Gatos escrevia:
"De ano para ano, Eça de Queirós
vem a Lisboa, observar de quantos séculos Portugal retrogradou desde a última
visita que lhe fez. E das suas janelas do Rossio, vê arrastar-se embaixo a
miserável gente, amarela e morna que vai para o emprego público ou vem da casa
de penhores".
Em 1898, festeja-se o quarto
centenário da descoberta do caminho marítimo para a índia. Eça escreve uma
longa carta à esposa, ausente de Lisboa. Alguns períodos: "A família Apolônia
do tais cuidados me cercou, que quase me incomodou. Logo pela manhã os almoços
eram temerosos — porque o prato mais insignificante era sempre um imenso peru !
A etiqueta é comer de tudo, e eu cumpro. No último dia houve um jantar festivo.
Então foi tremendo ! Só arroz, havia de três qualidades. De todos tive de
provar — depois de repetir."
"Lisboa está em pleno centenário.
Dizem que vieram da província, mais de cem mil pessoas. Ainda apanhei o cortejo
cívico que não tinha civismo nenhum, e onde apenas ofereciam interesse, um
bando de pretos de Moçambique. Entusiasmo nenhum. O povo ainda não percebeu,
quem era este Vasco da Gama"
A prosa do Eça, mesmo íntima, ó sempre
saborosa.
***
Da mulher, dizia: "O homem tem
para fazer o drama, a guerra, a revolução, o duelo, o livro e o teatro. A
mulher confinada no mundo do sentimento, tem apenas o Amor".
E censurava-as maliciosamente
explicando:
"A mulher não aceita o corpo que
a Natureza lhe dá. Procura aquele que se vende nas modistas".
Perguntando qual era em seu entender, a mulher mais apetecida, Eça não hesitou:
"As mulheres querem-se como as
peras, maduras e de sete cotovelos..."
***
O genial escritor sempre teve grande
inclinação para as letras. Mais tarde, já consagrado, a sua velha ama comentava:
"E lembrar-me eu que me queixava do papel que ele consumia a escrevinhar
coisas quando era pequeno"! E para terminar, um pormenor que marca o
ambiente de ternura e de gentileza que havia na sua casa.
Eça adorava flores. A esposa, sempre
solícita, nunca deixava a sua mesa de trabalho, sem uma jarra.
— Em que mês estamos nós? Perguntou um
dia a D. Emília, a dedicada companheira do escritor.
E ela esclareceu: Estamos em abril. Não
vês os lilases?
Logo Eça, sorrindo:
— Tens razão. Aquela jarra ó o nosso calendário!
---
LOURENÇO
RODRIGUES
"Anedotas e episódios da vida de pessoas
célebres"
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes
(2019).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...